Poder de liberdade. É sobre isso que a autora Sue Monk Kidd fala ao leitor, através da história de Sarah Grimké e Hetty “Encrenca” Grimké. Duas meninas separadas e unidas pela sociedade. Sarah Grimké, filha de aristocratas, que no seu aniversário de 11 anos, recebe de presente a escrava Hetty “Encrenca” Grimké, que até então, nem poderia se atrever a entrar na Casa Grande.
Na primeira parte, período de novembro de 1803 a fevereiro de 1805, já é possível notar as personalidades das duas personagens principais. Ambas cientes de sua diferença social, mas com a mesma vontade de viver em uma sociedade mais justa. Os capítulos são intercalados entre as narrativas de Encrenca e Sarah, o que facilita identificar a evolução das duas personagens.
Os capítulos iniciais me deram a má impressão de que seria mais um livro explorando negativamente a escravidão. Afastei minha má impressão ao lembrar do nome da autora e da maneira que ela aborda o tema preconceito racial em sua obra adaptada para o cinema, A vida secreta das abelhas: com responsabilidade.
“A autora ainda vivia na cidade de Charleston (Carolina do Sul – EUA), em 2007, ano em que a obra de arte The Dinner Party estava exposta no Brooklyn Museum. A obra que […] celebra as conquistas femininas na civilização ocidental, representa o banquete de Chicago, no qual os pratos homenageiam trinta e nove convidadas de honra […], está sobre um chão de azulejos de porcelana com os nomes de novecentos e noventa e nove mulheres que fizeram importantes contribuições para a história.”. Entre quase mil nomes, a autora se deparou com os nomes de Sarah e Angelina Grimké, que viveram na mesma cidade em que ela vivia na época da visita à exposição.
Apesar de estar no meio da escrita de sua biografia, Traveling with Pomegranates, Kidd já pensava a respeito de seu próximo livro. Segundo ela, quando fez a viagem para visitar a obra de arte The Dinner Party, tinha em mente apenas que seu desejo era escrever sobre duas irmãs. Qual seria a história, ainda era a dúvida que foi sanada posteriormente à referida visita. Após seu retorno à Charleston, deu início à exploração das vidas das irmãs Grimké, e pôde se certificar que havia encontrado as irmãs sobre as quais gostaria de escrever.
A autora faz uso da linguagem comum nas senzalas, ao mesmo tempo em que aplica no texto a linguagem da comunidade aristocrática. As duas formas de escrita podem ser notadas em todos os capítulos, pois estes se alternam entre a narrativa das personagens Hetty “Encrenca” e Sarah Grimké. No entanto, é possível observar certa dificuldade da autora em manter a linguagem dos escravos, quando utiliza a linguagem aristocrática nas falas dos personagens escravos, como é possível notar no trecho a seguir, na fala da personagem escrava Tia-Irmã: “Que cês tão olhando? Voltem ao trabalho de limpeza, deem um lustre completo no quarto delas. Quando os gatos saem… não deixem para amanhã o que podem fazer hoje.”. Também notei que os parágrafos não são sinalizados por travessões, apenas por aspas. O que ocorre também na edição publicada na língua original.
Apesar dos aspectos mencionados, a leitura da obra ocorre de maneira fluida, de modo a despertar no leitor o anseio pela próxima página. Durante a leitura, o leitor facilmente notará a evolução e o amadurecimento dos personagens, pois a estrutura utilizada por Kidd, não o deixa desnorteado com o avançar dos capítulos, mesmo que estes em sua maioria, apresentem novos personagens.
O período escravagista narrado (e pesquisado) pela autora, refere-se ao início do século XIX. É facilmente notável a riqueza de detalhes nos aspectos político, histórico e cenográfico que ela descreve em toda a obra.
As senhoritas Grimké fazem discursos, escrevem panfletos e exibem-se em público de maneiras não femininas há um tempo, mas não encontraram maridos. Por que todas as solteironas são abolicionistas? Por não serem capazes de arrumar maridos, pensam que podem ter chance com um negro, se ao menos conseguirem colocar a miscigenação em moda…
Como é possível notar no trecho acima, além de tratar sobre a escravidão, Kidd também trata sobre outro tema: liberdade feminina, que começa a ser abordada quando Sarah Grimké ainda é criança e foi repreendida por seu pai, ao expressar seu desejo de ser juíza. Quando se torna adulta, Sarah e Angelina Grimké se tornam duas notáveis figuras na luta contra a escravidão e a favor da liberdade, sendo “caçadas” pelas comunidades de inúmeras cidades (inclusive de Charleston). Lançando mão de um misto de sarcasmo, ironia e precisão, a autora parece amenizar todo o sofrimento que o separatismo causa à vida das personagens, que são muito bem desenvolvidas. O que é muito importante ressaltar, tendo em vista que a maioria delas são reais.
As duas personagens principais (Encrenca e Sarah) foram muito expostas. Suas personalidades fortes e peculiares (para a época) ficam muito evidentes desde o início, quando ambas ainda são crianças. Outra personagem muito marcante, bem desenvolvido e exposto é Dinamarca Vesey, que coloca sua vida em risco, ao dar início a uma revolução em defesa dos escravos, e cuja figura torna-se de suma importância para a vida de Encrenca.
O leitor terá facilidade em visualizar a casa dos Grimké, a senzala onde Mamã dormiu com Encrenca (até que ela foi dada de presente para Sarah Grimké), o quartinho em que posteriormente foram dormir dentro da casa grande; a casa de tortura que fica na cidade… sempre com detalhamento preciso e sem delongas.
A autora desenvolve a trama de maneira em que os únicos questionamentos a serem feitos pelo leitor, referem-se à exclusão racial e feminina. Ainda que os temas abordados não sejam inéditos, esse livro tem papel importante na literatura. Desafia as convenções ao falar da solidez e importância tanto do negro quanto da mulher, que, guardadas as devidas proporções, seguem sendo contestadas por parte da sociedade. Ao narrar o cotidiano de Encrenca e Sarah, Kidd faz com que o leitor note como a essa mesma sociedade subjugava, e ainda o faz, esses mesmos negros e essas mesmas mulheres.
Como disse anteriormente, a autora lança mão de um vocabulário irônico, sarcástico e até mesmo divertido. A narrativa de Encrenca é marcada por seu humor-negro, sarcasmo e sua ironia. Gradativamente, a personagem conta sua história e sua família, ao mesmo tempo em que a entrelaça os acontecimentos do presente. Sua história é tocante e com muitos elementos históricos: criança, negra, escrava, início do século XIX. Um trechos em que se pode notar isso, é na fala em que ela questiona a entrada e a saída do bacon:
A sinhá ralhou com Tomfry, disse que fizessem silêncio, uma dama não precisa saber de onde vem seu bacon. Quando ouvimos isso, eu disse para Tia-Irmã que a sinhá não sabia por qual lado o seu bacon entrava e por qual lado ele saía. A Tia-Irmã me deu um tapa tão grande que eu fui parar no dia anterior.
Com um vocabulário tão democrático e temas indiscutivelmente atuais, a obra A invenção das asas pode facilmente ser indicada como literatura escolar, de lazer para indivíduos da terceira idade, a título de conhecimento aos universitários, àqueles que necessitam apenas de uma boa leitura, mas principalmente àqueles que vêm trazendo com eles as idéias machistas e racistas, e que ainda não se curvaram à necessidade de tratar a todos com respeito, amor e empatia.
Um romance extraordinário que me mostrou o que é ser mulher – escrava ou livre. Para qualquer uma que já teve dificuldade em encontrar seu poder ou sua voz… É impossível ler este livro e não terminá-lo pensando de forma diferente sobre a situação da mulher e sobre todas as heroínas desconhecidas que foram essenciais para chegarmos até aqui. (WINFREY, Oprah. 2014. O, The Oprah Magazine)
Título: A invenção das asas
Título original: The invention of wings
Autor: Sue Monk Kidd
Tradução: Flávia Yacubian
Editora: Companhia das Letras
Lançamento: 2014
Gênero: Romance
Nº de Páginas: 328
Formato: 16 x 23 cm
Acabamento: Brochura
ISBN: 978-85-65530-48-4
Valor: r$ 34,90
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Colaboração: Ludymilla Duarte Borges