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Relacionamentos surreais na era digital

2016

Cercada de amigas solteiras por todos os lados, virei confidente atuante e tenho acompanhado de perto o processo da paquera que beira o surrealismo nos dias de hoje.

Automaton, arte digital e surreal de Kazuhiko Nakamura.
“Automaton”, arte digital e surreal de Kazuhiko Nakamura.

Os tempos são mesmo outros. O casal se conhece, consideremos que pessoalmente, pouco conversam e para não demonstrar muito interesse os homens não pedem o telefone, cabendo às mulheres (cada vez mais) ansiosas esse papel. E ele não pedirá de volta o dela, no máximo pedirá que dê um toque no dele pra ficar registrado. Independente do desfecho do encontro, ainda na mesma noite, em separado, eles pesquisarão sobre o potencial parceiro na internet. Uma conversa bacana sobre afinidades e hobbies será substituída por uma busca fria no Google. Com o nome e o sobrenome em mãos, é o Google que vai dizer quem é, o que faz da vida, quantos anos tem, que redes sociais frequenta, do que gosta, e se tiver sorte, encontrará algumas fotos que norteará os seguintes passos da relação.

Uma vez aprovado nessa pesquisa inicial, em busca de saber mais sobre o potencial profissional do pretendente, pode-se recorrer ao Linked In, que mostrará o curso superior que fez, a universidade que estudou, se fez pós-graduação, o tempo de mercado, em quais empresas trabalhou, se é empreendedor, em qual ramo de negócio atua, quantos idiomas fala, o que dará uma boa pista se é bem sucedido ou não. Ou seja, se vale a pena ou não essa tenebrosa fase de investimento virtual, já que sair pra jantar e pagar a conta está fora de cogitação.

Apesar do cara ter o telefone, ligar nem em caso de vida ou morte! Um convite para ser amigo do Facebook pode abrir portas interessantes, através da rede social pode-se analisar tudo que a pessoa publica, que dará pistas do temperamento, do gosto, poderá ver fotos, vídeos e muito mais (depende dos filtros de exposição de cada um). Vale lembrar que as redes sociais retratam a imagem que essa pessoa quer passar de si e não o que elas são em essência, portanto cuidado com as fantasias, expectativas e consequentes frustrações.

Ainda no Face, em busca de referências, ao analisar os amigos, provavelmente vai descobrir que já “pegou” alguém, ou que naquela lista figuram vários ex paqueras, seja da época do colégio, de uma festa, do carnaval, da faculdade. Mas isso não será empecilho, o pesquisador até se sentirá bem em fazer parte do grupo, do “metiê”, a autoestima agradecerá!

Relacionamentos na era digital.
Relacionamentos na era digital. Foto: Reprodução

Chegou a hora de checar os aplicativos, se não tiver Instagram caia fora! Se a pessoa não tem nem um smartphone, tá totalmente por fora! E no Instagram as fotos e os filtros serão mais uma vez conferidos, vai dar pra descobrir se a pessoa é caseira, baladeira, se é gulosa, que tipo de natureza gosta, se gosta de se expor ou se é mais reservada, se segue mais do que é seguido, mas o melhor mesmo será descobrir os locais que frequenta. Sim, o Instagram conectado ao Foursquare dará a direção exata de onde a pessoa estará a cada instante. O que poupa muito o trabalho de ligar e convidar pra sair e a exposição de levar um “toco”. Se você sabe que a pessoa está em um determinado local, ou você vai lá (o que quase nunca acontece), ou fica com medo de encontrá-la com outra pessoa e prefere ir pra um lugar bem diferente. Ligar pra combinar de ver? Nem pensar! Ligar é o contato mais “Demodê”! A voz pode revelar intenções que a palavra escrita não exibe. Outro dia ouvia uma amiga vangloriar-se da Super Atitude (com maiúsculas) que o paquera teve ao ligar num sábado a noite, sugerindo de se encontrarem em uma festa! Um contato vocal em tempos de tantas mensagens seria mesmo um grande diferencial, mas pensei: estamos mesmo nos contentando com tão pouco?

Outro app que não pode faltar é o Whatsapp, substituto do MSN e muito mais à mão do que o chat do Face. Você manda uma mensagem, sabe se a pessoa recebeu ou não, que horas leu, qual última hora que ficou online, o que pode dizer muito sobre essa pessoa. Cada dia mais conectados, o Whatsapp é a maneira perfeita pra paquerar sem voz, sem tons, sem exposição. E o melhor é que você pode jogar várias iscas de uma só vez! Pode mandar a mesmíssima mensagem irresistível que você bolou pra várias pessoas ao mesmo tempo e acompanhar de camarote as reações. E você não precisará dizer onde está, o que tá fazendo. Você poderá estar em qualquer lugar, trabalhando, dirigindo, malhando, ou até mesmo fazendo as suas necessidades. Não tem dia nem lugar, toda hora é hora de “whatsappear”.

Em geral seus frequentes usuários são pessoas solitárias com sua legião de bichinhos virtuais, vez ou outra alimentados por um olhar de curiosidade pra saber a última hora que o outro ficou online, uma frase com várias possibilidades de interpretação, uma carinha que pode revelar alguma ponta de sentimento, uma fotinha de si próprio com o intuito de promover-se. Ao invés de adultos responsáveis, que sabem o que querem, são meninas e meninos assustados, com seus Tamagotchis, dando carinho, comida e atenção na hora que dá, na hora que der, querendo manter um vínculo que sequer foi criado, com medo de assumir compromisso, de crescer junto, de ser parceiro; medo de sair da vida virtual, de encarar a vida real, de sair, de conviver, de convencer de que é uma boa opção, e de que vale à pena de cara limpa. Não estou falando da importante independência, duramente conquistada pós-casa dos pais, mas numa liberdade vazia que beira a arrogância da auto-suficiência, a escolha banal de quem sabe que há muita oferta, tão numerosa quantos os likes do Face e Instagram, tão fugaz como a velocidade dos posts nas redes sociais, efêmeras como as paixões virtuais.

Amor na era digital, paixão virtual.
Estamos cada vez mais conectados. Foto: Reprodução

Com tantas formas de manter-se ligado, seria bom que essas ferramentas fossem capazes de aproximar o potencial casal, mas não é o que acontece. É tanta virtualidade e especulação que com isso as relações vão se tornando cada vez mais superficiais, ilusórias e fantasiosas. É como se as pessoas temerosas e cada vez mais carentes procurassem suprir suas necessidades emocionais através de poucas palavras, de “emoticons”, de vídeos engraçados e fotos. As pessoas sentem-se íntimas sem que seja preciso conviver. Sem que seja necessário um abraço, o cheiro, a pele, o tato. O beijo perde a importância e a fase da conquista e do “enamoramento” dos tempos de outrora, de frio na barriga a cada ligação, de horas ouvindo a voz do outro, da vontade de estar junto, perto, presencialmente vai se esvaindo, se perdendo. O que vemos é um monte de adulto agindo como adolescente em busca apenas de sexo casual, incapazes de se relacionar, de se aproximar, de se envolver. Utilizando como escudo a tecnologia, que aproxima, mas também afasta; que tira o prazer do encontro olho no olho, deixando a acomodação e a inércia atuar; que otimiza, mas empobrece o tempo em que antes era possível dedicar-se a conhecer intimamente, verdadeiramente e presencialmente alguém.

Como amiga confidente, já que não dá pra mudar essa realidade, aconselho que entrem no jogo com leveza e humor, que criem menos expectativas com mensagens sem conteúdo, que não busquem compreender intenções por trás de ações mínimas. Não adianta enganá-las, não tem desculpas, sempre relembro que quem quer, toma atitude, liga, marca de ver e quer estar junto na vida real. O resto é desculpa esfarrapada, é pra brincar, saciar o ego, pra sentir-se bem usando-as como um bichinho virtual sempre disposto a dar afeto quando é lembrado. É triste ver como atualmente são mal utilizadas todas essas tecnologias quando o assunto é relação. Vida Real, Paixões Virtuais, Relacionamentos Surreais.